sexta-feira, 20 de março de 2015

Remate na Gaveta - O diário de Enke


Esta semana recordamos e folheamos algumas páginas do diário de um dos maiores guarda-redes que passou por Portugal e que hoje habita em todos os nossos corações. Apesar de ter sido dono de uma inegável qualidade, não conseguiu arranjar as forças necessárias para ultrapassar todos os maus momentos que vivenciou. Temos saudades tuas, Robert Enke.

Robert Enke nasceu a 24.08.1977 na cidade de Jena, na Alemanha Oriental. Como a maior parte dos jovens de Jena da sua idade, Robert deu os primeiros passos no mundo do futebol no FC Carl Zeiss Jena, clube local. Curiosamente, era um dos avançados do plantel até que a família do guarda-redes da sua equipa teve de emigrar para a Rússia, obrigado o treinador a procurar alternativas. Procurou, experimentou e decidiu: Enke era o novo guarda-redes da equipa!


Aos 15 anos já era o guarda-redes titular da seleção alemã de sub-16. Viveu um grande momento em pleno Estádio do Wembley, quando defrontou a seleção inglesa e deixou todos boquiabertos com a segurança e maturidade com que encarava todos os lances. Era, sem dúvida, uma grande esperança do futebol alemão. Com 17 anos, Robert era já titular do FC Carl Zeiss Jena, que militava na segunda divisão da Alemanha. Terá sido nessa altura que Enke se deparou pela primeira vez com algo perfeitamente normal para um guarda-redes e para a qual ele não parecia estar preparado: o erro! Num dos jogos da sua equipa, saiu-se mal a um cruzamento, deixou escapar a bola e permitiu o golo à equipa adversária. Ficou uma semana fechado em casa. Na semana seguinte, novo erro fatal o abalou ainda mais, ao ponto de o fazer chorar e pedir ao treinador para o substituir, que não tinha condições para continuar. Apesar de toda a tranquilidade e segurança que passava à equipa, Enke parecia querer ruir com tão pouco e natural para um guarda-redes jovem.

As palavras de incentivo do treinador, colegas de equipa e amigos pareceram ser suficientes. Robert foi crescendo e aos 19 anos transferiu-se para o Borussia Monchengladbach. O jovem e tímido guarda-redes alemão pretendia crescer na Bundesliga, aprender com os melhores, desenvolver todo o potencial que tinha de forma a poder estar à altura dos grandes desafios que o campeonato alemão coloca. E assim foi nos dois primeiros anos, em que foi suplente de Uwe Kamps, experiente guarda-redes alemão. O seu momento tinha chegado no terceiro ano, aquando da lesão de Kamps, tendo alinhado na maior parte dos jogos nessa época. A equipa vivia um mau momento, acabou mesmo por descer de divisão nesse ano e o medo de falhar, de pensarem que não contribuía para o sucesso da equipa, causava pânico a Enke. Ele que em termos exibicionais estava em grande nível, sucumbia facilmente do ponto de vista psicológico.


Enke era mesmo das poucas pessoas que não reconhecia o grande talento que tinha. Jupp Heynckes, acabado de chegar ao SL Benfica, conhecia-o e contratou-o! Mas o outro lado de Robert Enke era imprevisível. Depois da sua apresentação como reforço encarnado, massacrado por todos os flashes da imprensa portuguesa, de todo o mediatismo que envolveu a sua contratação, Enke fraquejou, sentiu a pressão de um possível fracasso e tentou regressar de imediato à Alemanha. A sua esposa e o seu amigo/agente (ex-preparador físico no Borussia Monchengladbach) impediram-no. Mais um susto, mas rapidamente ultrapassado. No terreno as coisas eram diferentes, era já um guarda-redes de grande nível! Nem mesmo o “fardo” de suceder a Michel Preud’homme numa das piores fases do SL Benfica o impediu de se exibir a grande nível em pleno Estádio da Luz. Era um dos melhores jogadores da equipa, senão o melhor! Não havia dúvidas. Seguro, confiante, o ídolo dos adeptos. Aqui viveu uma das melhores fases da sua vida!

Vários clubes o seguiam. Tubarões. Mourinho treinou-o durante 4 meses no SL Benfica. Tinha sucedido a Heynckes à quarta jornada mas acabou por sair após a vitória de Manuel Vilarinho nas eleições para a Presidência do clube. Ambos viveram um dos momentos mais recordados pelos adeptos benfiquistas nesse período, a vitória por 3:0 sobre o rival Sporting CP. Enke, mais uma vez, mostrava que já era grande demais para o nosso campeonato. Foi então que Mourinho aconselhou o FC Barcelona a Enke e Enke ao FC Barcelona. O casamento deu-se no final da época!


Robert estava bem, tranquilo, pronto para a luta. Roberto Bonano e o jovem Víctor Valdés eram os outros guarda-redes do plantel. Enke era o favorito, aquele que dava melhores indicações na pré-época, nos treinos. O próprio Valdés reconheceu mais tarde que, no seio do grupo, todos esperavam que o alemão fosse o titular, estava extremamente confiante e seguro. Era uma máquina! Mas quem decidia era Van Gaal e o holandês escolheu… Valdés! A confiança de Enke voltou a fugir. Teimosamente, desmoralizou mais uma vez. Enke teve a sua primeira oportunidade na Copa do Rey, frente ao Novelda, do terceiro escalão espanhol. Ele sabia que nada tinha a ganhar com o jogo e que, na pior das hipóteses, tinha tudo a perder. Quem viu, diz que foi outro Enke que entrou em campo naquele jogo, um guarda-redes com medo do jogo, da bola, inseguro, a cometer erros, um deles fatal. O FC Barcelona caiu com estrondo, perdeu por 3:2, um escândalo com Robert debaixo de fogo. A pressão da imprensa e as declarações nada amigáveis do colega holandês Frank de Boer deixaram-no ainda mais em baixo.

A época tinha começado há pouco mas Enke já queria sair. Não havia relação com Van Gaal, não recebia incentivos do “mister”, sentia-se sozinho, sem ajudas. Começou a ser acompanhado por um psiquiatra. Na temporada seguinte aceitou ser emprestado ao Fenerbache da Turquia mas, na véspera do seu primeiro jogo, voltou a sentir o mesmo, vontade de sair. Precisava de apoio, de tratamento. Mesmo assim, Robert foi a jogo, sofreu 3 golos e, pior do que isso, os adeptos insultaram-no, atiraram-lhe objetos da bancada e pediram a sua saída… 3 semanas depois de chegar à Turquia, Enke voltava a Barcelona!


O seu pessimismo era evidente, principalmente no (não) reconhecimento das suas reais capacidades. E isso estava a condicionar a sua afirmação. Depois de meia época alternada entre consultas psiquiátricas e os treinos, Enke transferiu-se no último dia do mercado de Inverno para o Tenerife, da segunda divisão espanhola. O que parecia uma transferência estranha aos olhos dos amantes do futebol era simples para ele: procurava paz, tranquilidade, voltar a viver, a sentir-se ativo. E conseguiu-o! Nesta altura nasceu também a sua filha, Lara (com alguns problemas cardíacos).

Robert voltou à Alemanha, vinculando-se ao Hannover 96 e logo na sua primeira temporada foi considerado o melhor guarda-redes da Bundesliga, à frente de Oliver Kahn. Apesar da vida de Lara ter estado sempre em perigo, Enke parecia ter superado a grave depressão que sofrera em Barcelona. Lara tinha sido submetida a várias intervenções cirúrgicas nos primeiros meses e, perto de completar dois anos de vida, na sua quarta intervenção, a que corria menos riscos, acabou por não resistir… Estávamos em 2006.


Surpreendentemente, depois de tudo o que tinha passado, de despidas as suas fragilidades, Enke cumpriu o luto e parecia ter superado o trauma da perda da filha, certamente um dos acontecimentos mais dolorosos e dilacerantes que possamos imaginar. Em 2009 era já um ídolo no Hannover, ganhava protagonismo como guarda-redes titular da seleção alemã e tinha acabado de adotar uma menina. Tudo parecia estar de volta à normalidade, o equilíbrio emocional era uma realidade, sentia-se bem!

Mas, depois de todo este tempo, Robert voltava a cair. Inexplicavelmente, voltaram as más sensações que o impediam de treinar concentrado. Pior do que isso, pairava na sua cabeça a hipótese de cometer suicídio e ele não conseguia reprimir esses sentimentos. Apesar de todo o apoio psiquiátrico, familiar e amigo, Enke estava decidido. No dia 10 de Novembro, saiu de casa com o pretexto de ir para um treino e apagou todas as duas dores, todo o seu sofrimento. Enke não encontrou a luz ao fundo do túnel. Tinha 32 anos...

O mundo ficou chocado! Como era possível isto acontecer? E a este jogador, com tanto sucesso? Quais os seus motivos? Há quem diga que não tenha sobrevivido ao luto, ou que foi vencido pelo medo do fracasso que sempre o acompanhou. Certamente um pouco de tudo. A carta de despedida a que apenas a família teve acesso confessará o que sentia Robert. Minutos de silêncio foram cumpridos em todo o mundo, milhões de velas acendidas.


Os seus diários permitem-nos hoje perceber aquilo por que passou, todo o seu sofrimento, as suas angústias, os seus sentimentos. Faz-nos perceber que, acima de tudo, os jogadores de futebol são humanos, têm problemas e, na maior parte das vezes, são julgados injustamente. Tão ou mais importante que a componente física do jogador é a criação de condições psicológicas necessárias para o jogador se sentir bem, em casa, apto a dar aquilo que melhor sabe: jogar futebol. E Enke era um fora de série na arte de jogar futebol, disso ninguém tem dúvidas!

A vida foi curta demais para Enke. Mas a lição que dela retiramos é enorme!

Estarás sempre nos nossos corações, Robert!


Uma vez amado, para sempre recordado!

A memória do João


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