Esta
semana recordamos e folheamos algumas páginas do diário de um dos maiores
guarda-redes que passou por Portugal e que hoje habita em todos os nossos
corações. Apesar de ter sido dono de uma inegável qualidade, não conseguiu
arranjar as forças necessárias para ultrapassar todos os maus momentos que
vivenciou. Temos saudades tuas, Robert Enke.
Robert
Enke nasceu a 24.08.1977 na cidade de Jena, na Alemanha Oriental. Como a maior
parte dos jovens de Jena da sua idade, Robert deu os primeiros passos no mundo do
futebol no FC Carl Zeiss Jena, clube local. Curiosamente, era um dos avançados do
plantel até que a família do guarda-redes da sua equipa teve de emigrar para a
Rússia, obrigado o treinador a procurar alternativas. Procurou, experimentou e
decidiu: Enke era o novo guarda-redes da equipa!
Aos
15 anos já era o guarda-redes titular da seleção alemã de sub-16. Viveu um
grande momento em pleno Estádio do Wembley, quando defrontou a seleção inglesa
e deixou todos boquiabertos com a segurança e maturidade com que encarava todos
os lances. Era, sem dúvida, uma grande esperança do futebol alemão. Com 17
anos, Robert era já titular do FC Carl Zeiss Jena, que militava na segunda
divisão da Alemanha. Terá sido nessa altura que Enke se deparou pela primeira
vez com algo perfeitamente normal para um guarda-redes e para a qual ele não
parecia estar preparado: o erro! Num dos jogos da sua equipa, saiu-se mal a um
cruzamento, deixou escapar a bola e permitiu o golo à equipa adversária. Ficou
uma semana fechado em casa. Na semana seguinte, novo erro fatal o abalou ainda
mais, ao ponto de o fazer chorar e pedir ao treinador para o substituir, que
não tinha condições para continuar. Apesar de toda a tranquilidade e segurança
que passava à equipa, Enke parecia querer ruir com tão pouco e natural para um
guarda-redes jovem.
As
palavras de incentivo do treinador, colegas de equipa e amigos pareceram ser
suficientes. Robert foi crescendo e aos 19 anos transferiu-se para o Borussia
Monchengladbach. O jovem e tímido guarda-redes alemão pretendia crescer na
Bundesliga, aprender com os melhores, desenvolver todo o potencial que tinha de
forma a poder estar à altura dos grandes desafios que o campeonato alemão coloca.
E assim foi nos dois primeiros anos, em que foi suplente de Uwe Kamps,
experiente guarda-redes alemão. O seu momento tinha chegado no terceiro ano,
aquando da lesão de Kamps, tendo alinhado na maior parte dos jogos nessa época.
A equipa vivia um mau momento, acabou mesmo por descer de divisão nesse ano e o
medo de falhar, de pensarem que não contribuía para o sucesso da equipa,
causava pânico a Enke. Ele que em termos exibicionais estava em grande nível,
sucumbia facilmente do ponto de vista psicológico.
Enke
era mesmo das poucas pessoas que não reconhecia o grande talento que tinha.
Jupp Heynckes, acabado de chegar ao SL Benfica, conhecia-o e contratou-o! Mas o
outro lado de Robert Enke era imprevisível. Depois da sua apresentação como
reforço encarnado, massacrado por todos os flashes da imprensa portuguesa, de
todo o mediatismo que envolveu a sua contratação, Enke fraquejou, sentiu a
pressão de um possível fracasso e tentou regressar de imediato à Alemanha. A
sua esposa e o seu amigo/agente (ex-preparador físico no Borussia
Monchengladbach) impediram-no. Mais um susto, mas rapidamente ultrapassado. No
terreno as coisas eram diferentes, era já um guarda-redes de grande nível! Nem
mesmo o “fardo” de suceder a Michel Preud’homme numa das piores fases do SL
Benfica o impediu de se exibir a grande nível em pleno Estádio da Luz. Era um
dos melhores jogadores da equipa, senão o melhor! Não havia dúvidas. Seguro,
confiante, o ídolo dos adeptos. Aqui viveu uma das melhores fases da sua vida!
Vários
clubes o seguiam. Tubarões. Mourinho treinou-o durante 4 meses no SL Benfica.
Tinha sucedido a Heynckes à quarta jornada mas acabou por sair após a vitória
de Manuel Vilarinho nas eleições para a Presidência do clube. Ambos viveram um
dos momentos mais recordados pelos adeptos benfiquistas nesse período, a
vitória por 3:0 sobre o rival Sporting CP. Enke, mais uma vez, mostrava que já
era grande demais para o nosso campeonato. Foi então que Mourinho aconselhou o
FC Barcelona a Enke e Enke ao FC Barcelona. O casamento deu-se no final da
época!
Robert
estava bem, tranquilo, pronto para a luta. Roberto Bonano e o jovem Víctor Valdés
eram os outros guarda-redes do plantel. Enke era o favorito, aquele que dava
melhores indicações na pré-época, nos treinos. O próprio Valdés reconheceu mais
tarde que, no seio do grupo, todos esperavam que o alemão fosse o titular,
estava extremamente confiante e seguro. Era uma máquina! Mas quem decidia era
Van Gaal e o holandês escolheu… Valdés! A confiança de Enke voltou a fugir. Teimosamente,
desmoralizou mais uma vez. Enke teve a sua primeira oportunidade na Copa do
Rey, frente ao Novelda, do terceiro escalão espanhol. Ele sabia que nada tinha
a ganhar com o jogo e que, na pior das hipóteses, tinha tudo a perder. Quem
viu, diz que foi outro Enke que entrou em campo naquele jogo, um guarda-redes
com medo do jogo, da bola, inseguro, a cometer erros, um deles fatal. O FC
Barcelona caiu com estrondo, perdeu por 3:2, um escândalo com Robert debaixo de
fogo. A pressão da imprensa e as declarações nada amigáveis do colega holandês
Frank de Boer deixaram-no ainda mais em baixo.
A
época tinha começado há pouco mas Enke já queria sair. Não havia relação com
Van Gaal, não recebia incentivos do “mister”, sentia-se sozinho, sem ajudas.
Começou a ser acompanhado por um psiquiatra. Na temporada seguinte aceitou ser
emprestado ao Fenerbache da Turquia mas, na véspera do seu primeiro jogo,
voltou a sentir o mesmo, vontade de sair. Precisava de apoio, de tratamento. Mesmo
assim, Robert foi a jogo, sofreu 3 golos e, pior do que isso, os adeptos
insultaram-no, atiraram-lhe objetos da bancada e pediram a sua saída… 3 semanas
depois de chegar à Turquia, Enke voltava a Barcelona!
O
seu pessimismo era evidente, principalmente no (não) reconhecimento das suas
reais capacidades. E isso estava a condicionar a sua afirmação. Depois de meia
época alternada entre consultas psiquiátricas e os treinos, Enke transferiu-se
no último dia do mercado de Inverno para o Tenerife, da segunda divisão
espanhola. O que parecia uma transferência estranha aos olhos dos amantes do
futebol era simples para ele: procurava paz, tranquilidade, voltar a viver, a
sentir-se ativo. E conseguiu-o! Nesta altura nasceu também a sua filha, Lara (com
alguns problemas cardíacos).
Robert
voltou à Alemanha, vinculando-se ao Hannover 96 e logo na sua primeira temporada
foi considerado o melhor guarda-redes da Bundesliga, à frente de Oliver Kahn.
Apesar da vida de Lara ter estado sempre em perigo, Enke parecia ter superado a
grave depressão que sofrera em Barcelona. Lara tinha sido submetida a várias
intervenções cirúrgicas nos primeiros meses e, perto de completar dois anos de
vida, na sua quarta intervenção, a que corria menos riscos, acabou por não
resistir… Estávamos em 2006.
Surpreendentemente,
depois de tudo o que tinha passado, de despidas as suas fragilidades, Enke
cumpriu o luto e parecia ter superado o trauma da perda da filha, certamente um
dos acontecimentos mais dolorosos e dilacerantes que possamos imaginar. Em 2009
era já um ídolo no Hannover, ganhava protagonismo como guarda-redes titular da
seleção alemã e tinha acabado de adotar uma menina. Tudo parecia estar de volta
à normalidade, o equilíbrio emocional era uma realidade, sentia-se bem!
Mas,
depois de todo este tempo, Robert voltava a cair. Inexplicavelmente, voltaram
as más sensações que o impediam de treinar concentrado. Pior do que isso,
pairava na sua cabeça a hipótese de cometer suicídio e ele não conseguia
reprimir esses sentimentos. Apesar de todo o apoio psiquiátrico, familiar e
amigo, Enke estava decidido. No dia 10 de Novembro, saiu de casa com o
pretexto de ir para um treino e apagou todas as duas dores, todo o seu
sofrimento. Enke não encontrou a luz ao fundo do túnel. Tinha 32 anos...
O
mundo ficou chocado! Como era possível isto acontecer? E a este jogador, com
tanto sucesso? Quais os seus motivos? Há quem diga que não tenha sobrevivido ao
luto, ou que foi vencido pelo medo do fracasso que sempre o acompanhou.
Certamente um pouco de tudo. A carta de despedida a que apenas a família teve
acesso confessará o que sentia Robert. Minutos de silêncio foram cumpridos em
todo o mundo, milhões de velas acendidas.
Os
seus diários permitem-nos hoje perceber aquilo por que passou, todo o seu
sofrimento, as suas angústias, os seus sentimentos. Faz-nos perceber que, acima
de tudo, os jogadores de futebol são humanos, têm problemas e, na maior parte
das vezes, são julgados injustamente. Tão ou mais importante que a componente física
do jogador é a criação de condições psicológicas necessárias para o jogador se
sentir bem, em casa, apto a dar aquilo que melhor sabe: jogar futebol. E Enke era um fora de série na arte de jogar futebol, disso ninguém tem dúvidas!
A
vida foi curta demais para Enke. Mas a lição que dela retiramos é enorme!
Estarás
sempre nos nossos corações, Robert!
Uma
vez amado, para sempre recordado!
A
memória do João
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